A vida é como um mar...
A vida é como um mar...
Há dias em que as ondas não se fazem sentir, em que a mais breve e ligeira brisa é suficiente para nos fazer navegar, em que há tempo para tudo - para pescar, para apreciar os golfinhos que puerilmente acompanham a marcha do barco, para apreciar o pôr-do-sol e para deixarmo-nos dormitar sob um céu estrelado, repleto de sonhos e fantasias...
E também há dias em que o mar se torna revolto, em que as ondas surgem qual montanhas oceânicas, em que os ventos não sopram, mas sim rugem, lançam temíveis e incompreensíveis bramidos, dias em que o Sol não desponta porque a névoa é demasiado densa, noites em que a agitação é imensa e não podemos descurar o rumo que traçámos inicialmente, sob pena de nos virmos a perder...
Neste momento, estou algures no meio da tempestade. Há cada vez mais e mais ondas a rebentarem sobre o meu barco, há cada vez mais e mais ventos a tentarem impedir-me de chegar ao meu destino, ao ponto que escolhi para poder aportar e descansar, mesmo que por breves momentos, em paz. Neste caso, não falo apenas metaforicamente, falo da realidade pura e crua dos factos, das coisas e das questões que compõem esta minha vida, ou se quisermos, esta minha travessia oceânica...
Já velejei as águas calmas do Atlântico, já me deixei levar pelos mares do Norte, já visitei as baías do Índico, já provei o gelo dos mares do Sul...mas nunca me havia aventurado nas águas do Pacífico. O nome por si só tem o seu quê de engraçado - pacífico, pois claro... - e não deixa de ser curiosa essa nomenclatura. Seja como for, julgo que me encaminho agora rumo às águas do Pacífico Sul, local desconhecido para muitos. Não sei o que me espera, não conheço rotas, não estudei as suas correntes marítimas. Nunca me interessei muito por esta zona dos oceanos por saber que não estava preparado para esta travessia...
Mas quis o destino que aqui viesse parar. Como? Não sei. Porquê? Tão-pouco o sei. Para quê? Não faço a mais pequena ideia. Apenas sei que neste momento já não há tripulação a bordo desta embarcação para além de mim. Aos poucos todos foram saltando borda fora, outros apearam neste ou naquele porto e por lá se estabeleceram. Que fazer, é a lei da vida, não é? E com isto acabei por ficar sozinho, membro único de um barco gigantesco, mas que por vezes parece um mero bote salva-vidas...
Sou Imediato, Grumete e Capitão deste barco. Sou Cozinheiro, Médico e guarda-costas de mim mesmo...É a mim que cabe a difícil tarefa de tentar encontrar a rota certa, o caminho mais seguro e indicado para poder aportar e finalmente pisar terra firme. No entanto, já não há bússola, astrolábio, sextante, já não há nada. Todos os instrumentos de orientação extraviaram-se ao longo desta viagem que já leva...algum tempo...mais do que eu próprio desejara...
Resta-me recorrer ao meu instinto, à minha capacidade (supostamente inata) de orientação, de guia. Só me resta recorrer à Natureza, aos astros e às estrelas. Foi assim antigamente, talvez possa ser assim agora. A minha única salvação parece ser guiar-me pela estrela-guia, pela astro que sempre orientou os marinheiros desde que estes se aventuraram em alto mar. Mas nem sempre consigo ver a minha estrela-guia. Por vezes torna-se difícil encontrá-la, guiar-me por ela. Névoa, neblina, chuva, nuvens, tudo acontece de quando em vez e atrapalha a minha orientação. Talvez por isso me sinta meio desorientado, meio perdido, sem saber muito bem que rumo tomar, que rota seguir...
Nessas alturas dirijo-me aos céus e peço aos deuses que sejam clementes e benevolentes, rogo-lhes que me poupem umas quantas situações mais periclitantes, mais trabalhosas. Peço-lhes que me ajudem, pois as forças são cada vez menores, os ânimos já quase que não existem e torna-se complicado. Umas vezes sou atendido prontamente...outras vezes parece que é pior, que mais valia não pedir nada. A vida é mesmo assim: um dia contamos com chuva e aparece-nos um arco-íris, e noutro dia sonhamos com a brisa e somos abanados por ciclones e tufões...
Por agora, julgo estar a passar no meio de uma zona bastante instável em termos metereológicos. Tão depressa faz Sol como chove granizo, de manhã o barco parece que vai ser devorado pelas ondas e à noite o barco deixa-se embalar sonolentamente na calmia do oceano. Tudo isto faz-me estar preparado para tudo, mesmo não sendo capaz de prever nada...
Aliás, as previsões nunca foram o meu forte. Há muito tempo atrás, muito antes de me tornar marinheiro da vida, eu era um homem da terra firme, uma pessoa que prezava muito bem ter os pés bem assentes em terra e estimava muito essa segurança. Estimava tanto que passei a tê-la como garantida e aos poucos tornei-me náufrago sem nunca ter me lançado a um oceano revolto. Acabei por ser engolido pelas ondas do mar e lançado para bem longe da terra firme. E eu, que tanto prevera coisas para mim e para os meus, eu que tantos planos fizera e que tanto projectara para o meu futuro, dei-me conta do meu erro, da minha incrível ingenuidade e pedi a Deus para que me deixasse sucumbir perante o vaivém constante das ondas. Mas Deus tinha outros planos para mim...
Deus fez de mim náufrago para que pudesse apreciar a salvação, caso a alcançasse e fizesse por merecê-la. E creio ter feito por isso, visto que fui salvo. Certa noite, no meio de um intenso nevoeiro e quando julgava estar quase nos limites da hipotermia, eu vi a luz. Aliás, vi uma estrela, a minha estrela. Inconscientemente, mas como se não tivesse feito outra coisa na vida, deixei-me salvar por ela. Não sei que manobras de reanimação foram entretanto utilizadas, mas a verdade é que, dias depois, todo eu estava restabelecido, pronto para me aventurar naquilo que surgisse, fosse por terra, ar ou mar. Quis o destino que me quedasse em terra por mais uns tempos. E assim pude voltar a contemplar o Sol, os montes, a Lua, as estrelas. Pude voltar a sentir a alegria de viver que julgara extinta em mim e perdida em pleno naufrágio pessoal...
Seguiram-se meses felizes, dias felizes, horas felizes, minutos e segundos mais felizes ainda. Estava de volta ao mundo. Eu era de novo eu, um ser do mundo, que amava o mundo e que sonhava o mundo. Com o passar do tempo pensei e repensei sobre o meu papel e teorizei bastante sobre a questão das previsões. Estive bastante reticente em voltar a querer prever ou planear coisas, mas como a vida só me dava bons motivos e como tudo era perfeito, lá me lancei eu em algumas previsões...
Porém, não é só no alto mar que o tsunami actua, e eu acabei por ser varrido por um imenso tsunami estando em plena terra. Todos os meus planos, todas as minhas ideias, tudo, mas mesmo tudo foi por água abaixo. Não sei se poderia ter previsto isso. Acho que se pudesse, tê-lo-ia feito. Nem tão-pouco creio ter estado distraído ao ponto de me tornar o verdadeiro causador da minha própria desgraça: mais não fiz do que actuar consoante as indicações que recebia de um lugar que poucos conhecem e que quase ninguém ousa a se aventurar...
O certo é que o ditado da montanha e de Maomé ganhou uma nova significação - se Maomé não vai ter com o tsunami, o tsunami vem ter com Maomé...
E quiçá imbuído de uma raiva tremenda contra este tsunami, decidi tornar-me marinheiro. Deixei de parte o amor à terra firme, o apego às previsões mais facilmente perceptíveis dos campos, bosques e vales, e lancei-me numa aventura marítima. Para trás ficava tudo...até mesmo eu...Era também o fim das previsões, dos planos e dos ideiais de futuro...
No início foi difícil habituar-me. Não conhecia mares, rotas, ventos, ondas, estrelas, não conhecia nada. Talvez no passado eu tivesse sido um marinheiro de águas doces, mas agora eu era marinheiro de oceanos. Mas aos poucos lá me fui habituando e comecei a gostar das diferentes rotinas que o dia-a-dia me trazia. A cada porto uma aventura, uma história, uma ou várias conquistas. Em cada mar, nova aventura, novos obstáculos, novas conquistas. E por vezes, no retorno a um mesmo mar, as aventuras duplicavam de emoção, de interesse, de magia...
Doravante, pensei eu, será este o meu futuro - sulcar os mares, conhecer ventos e marés, pescadores e marinheiros, trutas e sereias. E assim foi, de facto, por algum tempo. Contudo, e apesar da excitação de um maremoto à vista, da beleza de uma ondulação mais inconstante, e apesar de ter conseguido reunir um tripulação nobilíssima, faltava-me algo. Comecei a notar isso quando, ao acordar numa bela manhã com um aroma de jasmim enebriante a pairar no ar (estranho, eu sei, em pleno alto mar sentir-se um aroma a jasmim), senti-me esmorecido, vazio por dentro, oco. Julguei estar a meio de uma crise de meia-idade, mas a sensação fez por me acompanhar ao longo de vários dias...
Foi então que decidi avisar a tripulação que iríamos, a partir de agora, navegar todos os mares e mais alguns, mas sem a ajuda de instrumentos de orientação, sem nexo e sem rumo aparente. Passaríamos a ser marinheiros errantes e a desafiar a vida em pleno alto-mar. Dei liberdade para que cada um decidisse o seu caminho e frisei que não haveria ressentimentos da minha parte se ninguém quisesse ficar. Apenas dois ou três permaneceram comigo. Mas ao fim de uma semana resolveram abandonar-me. Ou melhor, e sendo mais correcto para com eles: resolveram salvar-se. Um desses marinheiros, o último a deixar a embarcação, ainda hesitou na hora do adeus, mas acabou por seguir rumo a outros horizontes. Porém, após uma emocionada despedida, esse camarada fez questão de me alertar para os perigos que poderia vir a correr ao prosseguir sozinho, sem meios úteis para além do barco e sem tripulação. E quando icei a ponte que ligava o meu barco ao cais, ele disse-me: "Eu sei o que pretendes. Vais atrás do teu sonho, da tua estrela-guia". Na altura não liguei ao que disse...afinal, que sabia ele?
Após uns dias calmos e prazeirozos a disfrutar das maravilhas de uma vida a sós e com a Natureza a ser generosa comigo, eis que me dou conta da minha solidão, da minha situação e do caminho que havia escolhido. Ali estava eu, só e sem meios, abandonado por mim mesmo à minha própria sorte e sem saber o que fazer, por onde ir e que caminhos tomar. Resolvi deixar que as coisas tomassem o seu rumo naturalmente. O que o Fado quisesse, assim seria...
E quis o Fado que certa noite eu acordasse a meio de um sonho inusitado. Sonhava com uma estrela-guia, com a minha estrela-guia! Não quis acreditar...de imediato vieram-me à memória as palavras do marinheiro. Mas como sabia ele? Não consegui encontrar explicação lógica para isso. E lembrei-me dos meus tempos de juventude, dos meus tempos de moço de terra firme, numa altura em que dizia que nem tudo tem uma explicação lógica na vida. E de repente, as saudades. Saudades da terra firme, saudades dos habitantes da terra firme, saudades dos usos e costumes, das tradições, saudades de tudo o que um dia tivera e que tão inutilmente soube desperdiçar...
E não há pior saudade que aquela que sentimos em alto mar. Porque aqui nada mais há para além do mar. Só se tem água à volta. Água, água e mais água. E eu já estava farto de meter água na minha vida. Com tanta memória a assaltar-me a mente, com tanta sensação esquecida a assolar-me o coração, perdi-me em alto mar. Comecei a embrenhar-me em matagais oceânicos desconhecidos, em autênticas selvas amazónicas labirínticas e, aparentemente, sem saída...
Tive que me sujeitar ao que me estava a acontecer. Tornei-me mais fechado, mais circunscrito em mim e sobre mim mesmo. Passei a estar mais atento, mais solícito a todo e qualquer sinal que pudesse captar, fosse do mar, do ar, ou lá do que fosse. Julguei que ia ensandecer. Comecei a falar tanto tempo comigo mesmo que, às vezes, conseguia discutir...comigo. Tive que recorrer a Deus e aos Anjos e solicitei-lhes as suas companhias. Em boa hora o fiz, senão...
Porém continuei à deriva, sem saber por onde ia e para onde me levava o destino. Até que um dia se fez luz. Estava na altura do crepúsculo, ou lusco-fusco, como quiserem, e ela apareceu. A minha estrela-guia. Tão bela e surreal como quando aparecera no meu sonho. Brilhava tão intensamente que custava olhar directamente para ela. Aos poucos o seu brilho tornou-se suportável e do nada golfinhos surgiram a saltar, peixes-voadores a voar, gaivotas a planar sobre o barco e quase que podia jurar que o Monstro de Lockness também passou por ali...
Fitei a estrela-guia com cara de miúdo, com ar de garoto que nunca viu uma prenda tão bela como aquela que deseja ter no seu aniversário. Lá estava ela, a pairar sobre mim. A minha estrela-guia...
E como se de um conto do Peter Pan se tratasse, a estrela começou a falar comigo. Dia após dia ela aparecia, indicava-me o caminho, fazia-me companhia. Se estava triste ela animava-me, se chorava ela limpava as minhas lágrimas, quando estava mais só ela até me afagava os cabelos. Certa noite, quando revisitava o baú das minhas memórias à procura da sensação quase esquecida do que era amar, ela beijou-me. Pelo menos eu creio que sim. Talvez isto seja algum efeito retardatário da insolação ou algo do género, mas a verdade é que me senti beijado. E foi tão bom, tão mágico, tão lindo...
Com tudo isto, deixei de me sentir só e passei a galgar os mares quase tão velozmente quanto um chita percorre a sua presa na savana africana. Todos os quadrantes marítimos passaram a constar do meu livro de visitas. Todos, à excepção do Pacífico Sul...
Os dias tornaram-se tão belos, as noites tão mágicas, os segundos tão eternos, tudo graças à companhia da minha estrela-guia, que um dia, e sem saber muito bem como, quando e porquê, me dei conta que estava apaixonado por ela. Tentei rebater esta ideia, quer dizer, ninguém se apaixona pela sua estrela-guia...Mas era mesmo isso que sentia. Já não podia mais calar isso em mim. Não valia a pena. Para quê guardar algo tão belo? Porque não mostrar ao mundo a magia que se instalara em mim, a ternura que me ajudara a sentir a pessoa mais acompanhada, mesmo tendo em conta os últimos anos sem tripulação? Eu já não estava só e os céus, os ventos, os mares e as marés mereciam partilhar esta alegria comigo...
E certa noite, quando estávamos ambos abraçados a contemplar algumas constelações que testemunhavam a nossa cumplicidade, deixei escapar o que sentia por ela. No início ela não pareceu muito à vontade, mas logo deu a entender que não havia mal e que estava feliz por me fazer sentir tão bem, tão feliz. Permaneceu ali comigo até que adormeci. Ao acordar, dei conta de um bilhete que ela me deixara. "Obrigada e sê feliz"...
Sobressaltado, pus-me logo de pé, a chamar por ela. Invoquei vezes sem conta o seu nome, como tantas vezes fizera quando precisava da sua ajuda, mas ela não acudiu. Desta vez apenas podia escutar o resvalar das ondas no meu barco. Estava só novamente. Nesse dia nem o Sol, nem a Lua, nem mesmo as estrelas se mostraram. Nem os golfinhos, nem os peixes-voadores, nada, absolutamente nada se mostrou. Foi como se o mundo estivesse submerso num imenso e tenebroso eclipse, mas onde não se via a Lua ou o Sol...
Senti-me triste. Amargamente triste. Imensamente magoado e desejoso de gritar ao mundo que me sentia injustiçado e que, uma vez mais, o Fado não fora justo e que me passara nova rasteira. Ainda enchi os pulmões bem a fundo para depois tentar expelir/explodir raivosamente toda a minha angústia, mas nem sequer tive tempo para tal. Do nada, ondas gigantescas atiraram o meu barco para longe e de todos os lados ventos titânicos sopravam tão intensamente que os dois mastros principais se partiram e acabaram por ser sugados por alguns remoinhos que, entretanto, se abeiravam da minha embarcação. "O Poeta", nome com que baptizaram o meu barco, pouco tempo depois de me ter decidido tornar marinheiro, gigante conhecido e respeitado em todos os mares, tremia agora de medo e assemelhava-se a uma casca de noz a flutuar numa ribeira mais intempestiva por força das águas de Janeiro. E também eu tremia...
Não sei precisar quanto tempo durou a batalha entre o oceano e eu, apenas sei que quando as coisas acalmaram, eu senti um vento gélido a soprar e a arrepiar-me a espinha. Já tinha ouvido falar de tal vento, mas não queria crer. Eu não podia estar no Pacifico Sul. Mas estava. Assim pude comprovar através do tempo quase sempre nebuloso e chuvoso, pela falta de peixes a acompanhar a embarcação e pela violência com que tempestades repentinas e calamitosas surgiam e depois desapareciam, deixando sempre marcas e danos no Poeta...
Pensei desistir. Aliás, essa era uma das minhas especialidades - desistir. Noutros tempos, desisti da vida em terra, abdiquei de tudo o que havia conseguido e construído, deitei fora tantas e tantas coisas boas só por...estupidez, só pode. Como me arrependo. Como me arrependo de não ter tentado mais um bocadinho, aqui e ali, de modo a poder salvaguardar, reforçar ou assegurar que o que era meu, meu era. Mas não o fiz. E nem mesmo quando fui abençoado com a dádiva do amor após anos e anos de solidão, nem mesmo aí soube ser astuto e soube aguardar pela altura certa, pelo momento oportuno e pela hora mais indicada para declarar o meu amor...
E ao pensar nisso, lembrei-me de ter lido algures uma pergunta curiosa: "Desde quando há alturas propícias para se dizer a alguém que o/a amamos? Desde quando este tipo de sentimentos se rege por tabelas mais ou menos quantificativas e certeiras? Desde quando há tábua-rasa no amor?". Não sei porquê, mas esta lembrança aliviou-me, mesmo sabendo que isso não iria trazer de volta a minha estrela-guia...
Em vão tornei a chamar por ela. Ela não apareceu. Pelo menos não como eu estava à espera. Certa noite, numa das poucas noites em que o mar estava calmo e em que conseguia enxergar mais do que um palmo à frente dos olhos, dei conta de uns gritos. Claro que pensei que estava a alucinar...gritos em pleno alto-mar, no Pacífico Sul, tss tss, ao que chega um ser solitário. Mas de facto havia gritos, havia alguém a gritar por socorro, a pedir auxílio. Desci rapidamente ao meu camarote e fui buscar uma velha candeia que ainda iluminava qualquer coisa ao longe e comecei a procurar iluminar a zona de onde provinham os gritos. O meu únco receio era que o barco passasse, literalmente, por cima dela. Sim, era uma ela...
Como que por milagre, consegui descobrir o seu paradeiro exacto e resgatá-la. Após uma missão de salvamento pouco mais do que suicida, o Poeta acolhia o seu segundo tripulante actual, o primeiro em vários anos. A jovem encontrava-se tão debilitada que tive medo que nem viesse a saber quem era e como tinha ido ali parar. Tratei dela como se fosse minha filha (era um pouco mais nova do que eu, mas não tão nova assim), como se fosse um tesouro e tentei providenciar-lhe cuidados médicos tão bons e prestáveis que fariam corar de vergonha até o mais reputado médico de Nova Iorque...
Os dias seguintes, curiosamente os primeiros em que o Sol apareceu (finalmente!!!), foram dedicados única e exclusivamente a esta menina que surgira do nada na minha vida. Apesar do seu estado débil, ela ainda ia conseguindo comer qualquer coisa e passei a ter algo que há muito tempo não tinha: companhia às refeições. Isto, apesar de ter que comer ao lado dela, ela na cama, ainda combalida, e eu sentado no chão. À noite contava-lhe histórias das viagens que tinha feito ao longo dos anos, falava-lhe das lendas e dos mitos que testemunhei. De dia discutia com ela, salvo seja, quais seriam as melhores rotas, etc e tal, de modo a tentar conseguir que ela falasse. Mas nada...
Até que, numa noite como tantas outras, estava eu a tentar adormecer após tê-la adormecido a ela, quando ela desata a gritar, a espernear e a barafustar. Estava a sonhar. Ou melhor, estava a ter um pesadelo. De pronto abeirei-me dela e tentei acalmá-la. Impelida de uma força descomunal, a jovem não se quis deixar domar e deu bastante luta, chegando mesmo a atingir-me com pontapés e socos, acabando por me abrir o lábio inferior. Mas ao fim de alguns minutos a fera já estava dominada e para meu espanto, ela começou a acalmar-se quando comecei a afagar-lhe os cabelos. Aos poucos a menina assustada voltava ao seu estado sonolento e acabou por adormecer sobre o meu colo, agarrada à minha mão...
A manhã veio pouco depois e com ela uma grande supresa: a menina acordou-me. E falou comigo. Pediu desculpas pela noite agitada e explicou que desde miúda que tal lhe acontece. Agradeceu tudo o que tinha feito por ela, revelando que nestas semanas em que esteve acamada, esteve sempre consciente de tudo e que estava eternamente grata pela atenção que lhe havia dispensado, e apresentou-se: Clara. Era esse o seu nome...
Daí em diante resolvemos atracar numa ilha selvagem que surgiu no nosso horizonte e descemos para procurar mantimentos e madeira para reforçar o Poeta. As tempestades e a água do mar estavam a deixá-lo bastante enfraquecido e não queria naufragar devido ao desleixo ou à falta de atenção para com o meu grande companheiro de guerra...
Passaram-se algumas semanas de reparação e de reforço da estrutura do Poeta. Quanto à comida, só vivíamos à custa dos peixes que ambos pescávamos. E numa dessas pescarias, o impensável aconteceu. Clara ia sendo abalroada por um peixe que eu nunca vira antes, um peixe grande o suficiente para causar fractura de costelas ou algo do género, e, num impulso irreflectido, coloquei-me entre ela e o peixe, acabando por levar uma valente cabeçada na zona abdominal. Não sei quem ficou pior, se eu ou o tal peixe, mas as dores foram tão intensas que tive que voltar rapidamente para a praia. Ao chegar ao areal, uma valente chuvada começa a cair e nem tivemos tempo de correr para o barco atracado à beira-mar. Aliás, com as dores que sentia, eu mal conseguia andar, quanto mais correr. Abrigámo-nos no meio das árvores, mas a chuva, cada vez mais fria e intensa, começou a aumentar ainda mais as minhas dores. Clara, preocupada comigo e com o meu estado, resolveu aproximar-se de mim para me abrigar debaixo da sua toalha, já que eu estava só de calças, e...do nada, estávamos os dois cara a cara. De repente, o meu coração começou a palpitar, o meu corpo a tremer e não conseguia deixar de admirar a beleza de Clara. Ela, não sei como nem porquê, não deixava de se aproximar de mim e estava cada vez mais próxima, olhando sempre nos meus olhos. E foi aí que nos beijámos...
Se tivesse que descrever aquela sensação, acho que escolheria o 4 de Julho, dia dos Estados Unidos da América, quando os americanos comemoram a sua grandeza com milhares e milhares de fogos-de-artifício. Foi tão bonito, tão puro e tão belo...ai ai, um autêntico sonho...
E foi um sonho o que eu vivi a partir de então. Até que a monção passasse, acabamos por ficar atracados na praia e então tive direito a uma vida de rei: comer e amar, amar e comer. Fazíamos amor em todos os cantos e recantos da praia, éramos livres e donos de um mundo que apesar de ser só nosso, era o mais perfeito de sempre. Durante esse tempo aprendi a falar através do silêncio do olhar, aprendi a saborear a doçura de um beijo, aprendi a decifrar a magia de um toque, aprendi a identificar a força de um abraço, enfim, aprendi a amar novamente. E eu voltava a ser feliz. O passado já lá ia, importava, isso sim, o futuro...
A monção passou e fizemo-nos de novo ao mar. Não sabíamos para onde ir, mas isso pouco importava. Pelo menos, assim parecia...
Contudo, certo dia fomos surpreendidos por um tufão gigantesco. Clara perguntou-me se eu sabia que tufão era esse (os anos no mar permitiram-me identificar todos os tufões, ciclones, tsunamis, etc) e eu respondi que não sabia, que não conhecia aquela zona. Uma onda mais alta que o Everest varreu-nos para bem longe e o Poeta, mesmo tendo em conta as reparações e os reforços, não conseguia aguentar tanta agitação. De repente, e quando nos preparávamos para nos fecharmos nos camarotes, o barco dá uma guinada e tomba para um dos lados. Eu ainda consigo me agarrar a um cabo, mas Clara é apanhada desprevinida e começa a deslizar pelo convés em direcção ao mar bravio. De imediato lancei-me na direcção dela, mas apenas consegui agarrá-la por uma mão...
"Salva-te", dizia-me ela. "Salva-te, senão vamos os dois ao fundo". Não podia deixar que isso acontecesse, e foi isso que lhe disse, mas a força das ondas fazia o barco abanar cada vez mais e as nossas mãos começavam a soltar-se uma da outra. "Se fores, eu vou contigo. Depois de tanta coisa nesta vida, não te quero perder. Voltei a viver graças a ti, por isso..."...e zás, nova onda a rebentar e a jogar-nos uns bons 3 metros para o ar. Ao embatermos no mar, as nossas mãos já não estavam mais agarradas e estávamos unidos apenas por dois dedos...
"Deixa-me ir, por favor, salva-te e perpetua a nossa memória. Sei que escreves todas as noites nuns papéis que tens guardado num baú do camarote. A partir de agora, escreve sobre nós, sobre o que vivemos...mas deixa-me". Um dedo...apenas um dedo sustentava o corpo da mulher que eu aprendera a amar. E ao dar-me conta disso, decidi que ia morrer com ela. Não era a morte que desejava, mas ao menos ia com quem amava. E antes que o dedo não suportasse mais o corpo de Clara, eu disse-lhe "Clara, eu amo-te...e vou contigo até ao fim do mundo...eu amo..."...já não pude acabar a frase porque as ondas separaram-nos e quando julgava que ia deslizar junto com ela para o oceano que haveria de servir como sepultura não só de dois corpos, mas também de um amor lindo e mágico, eis que o destino prega-me uma partida e faz-me ficar preso num dos cabos que serviam para içar as redes de pesca...
"Maldito, maldito sejas...", foi tudo quanto consegui gritar enquanto via desaparecer, para sempre, a mulher que mais amara na minha vida...
A tempestade deve ter demorado horas e horas a passar, porque quando acordei os abutres estavam empoleirados no único mastro que sobrevivera àquela tragédia. E por incrível que pareça, o Poeta estava "de pé" e a navegar, ainda que tropegamente. O cabo que me impedira de conhecer o fundo do mar e lá me instalar com a minha amada continuava preso às minhas calças. Ao olhar para ele, desatei a chorar. Chorei durante várias horas...
Os dias passavam e apesar da bonança que se fazia anunciar em termos metereológicos, o meu coração continuava a ser fustigado por tsunamis e tsunamis de tristeza. Era a segunda pessoa que perdia após confessar o meu amor. A primeira de carne e osso, já que a primeira não era bem uma mulher, era mais uma aparição. Não tinha apetite, não tinha sono, não tinha vontade de viver, não tinha nada. Só desejava morrer...
Mas no meu inconsciente permanecia o pedido que Clara me havia feito: perpetuar a nossa história em papel. Não sabia se ia ser capaz. Para mim, Clara e o amor que lhe tivera (e tinha...e tenho ainda) eram superiores a todo e qualquer tipo de declaração ou manifestação literária. Mas em honra ao amor que sentia por ela e por tudo que passara com ela, lancei-me nessa tarefa...
Certa noite, mais uma daquelas em que o nevoeiro é tão denso que não vemos nem os próprios pés, e enquanto pensava na possibilidade de Clara ter sido levada para uma ilha deserta pelas ondas ou de algum navio ter conseguido dar com ela tal como acontecera comigo, o Fado deu-me a conhecer mais uma das suas facetas fatalistas. Algo embatera em mim ou eu embatera contra algo, pouco importa. O que importa é que o Poeta ficou desfeito e começou a partir pelo meio. Só tive tempo de recolher o que mais interessava (alguma comida, estojo de primeiros-socorros, uma arma e munições, e os apontamentos que acumulei ao longo de anos e anos de viagens). Coloquei tudo no bote salva-vidas (agora sim o Poeta era um bote salva-vidas) e lancei-me ao mar. Ao ver o mastro do Poeta ser engolido pelas ondas do mar, gritei bem alto o nome de Clara...
E recebi resposta. "Filho, és tu? Estás aí?", respondeu-me aquela voz suave e melodiosa que tantas vezes me sussurrara ao ouvido que me adorava, que eu a fazia feliz e sentir coisas que nunca sentira. Era Clara e ela estava viva. Mas como? Seria possível? Eu chamava por ela e ela por mim, mas o nevoeiro era demasiado forte. Pela ondulação do mar, reparei que ela deveria estar nalguma embarcação de grande porte e que se dirigia na direcção contrária à minha. Até nisso o destino estava a ser caprichoso...
Enquanto o destino teimava em nos afastar, Clara despedia-se de mim dizendo-me, entre lágrimas de alegria (por estar viva e por ter voltado a ouvir a minha voz) e tristeza (porque nos estávamos a separar) "Imagina que fui viajar...imagina que fui viajar por um mês ou dois ou dez...imagina que é isso, uma viagem...e que talvez a gente se volte a ver numa próxima vez..."...
As últimas sílabas já foram quase inaudíveis. O mesmo mar que me aproximou do amor estava, quiçá para sempre, a separar-me dele. Desejei a morte. Já não aguentava tanto sofrimento. Adormeci...
Acordei há pouco, depois de não sei quantas horas sem dormir e de mais umas quantas a dormir profundamente. Olho à minha volta e é de noite. O breu é imenso, gigante e avassalador. Não há a mais pequena ponta de luz à minha volta. A única que há é a que ainda provém da velha candeia, também ela uma sobrevivente. E graças a ela escrevo estas linhas agora...
Hoje, e à distância de não sei quantos anos do menino de terra firme e à distância de não sei quantos meses do homem que te amou, hoje sei que és a minha estrela-guia. O tal marinheiro tinha razão: eu vim, ainda que sem saber, à tua procura. Passei por tudo isto para te encontrar, para renascer e para viver as coisas mais bonitas de toda a minha vida. Passei por tudo isto para depois te perder...
Hoje, e apesar da dor que trago no peito e das saudades que me enchem os céus como se fossem uma autêntica chuva de estrelas, hoje sei que é por ti que ainda sobrevivo nestes mares indigentes. É por ti que ainda tenho forças para redigir umas quantas linhas de modo a poder perpetuar o amor que um dia nos uniu. É por ti que me dou ao trabalho de pensar no impensável: fazer planos, prever rotas, planejar uma espécie de futuro...
Hoje, sei que tu, minha doce e adorada Clara, tu és a verdadeira força que me alimenta, que me alegra, me consola e me acompanha. E hoje, tal como ontem e tal como desde há uns meses a esta parte, sei que é por ti que mantenho a ténue esperança de que, de facto, esta separação mais não é do que uma viagem, uma interrupção involuntária, mas necessária para que, pelo menos eu, possa redefinir estratégias e ganhar um novo alento e uma nova meta na vida, mesmo que o futuro possa ser curto para mim. É por ti que tento adivinhar o teu próximo destino de viagem, na esperança de te poder surpreender...é por ti que me deixo estar quieto, sentado à tua espera, de braços abertos, sorriso nos lábios e coração nas mãos para, num qualquer porto, num qualquer cais ou num qualquer aeroporto, te receber...
Não sei o que o amanhã me reserva. Temo não conseguir ter tempo de dar continuidade a estas linhas, a estas palavras vãs que apenas gostariam, tal como eu, de cumprir o que, um dia, me pediste: perpetuar o sentimento único, belo e incapaz de ser apagado que um dia nos uniu...
E se o amanhã já não se me apresentar, aqui fica este esboço...
Do Homem-menino e do menino-moço...
Uma constelação de beijos para ti, minha doce e adorada Clara...
PS - a todos os que possam ler isto: desculpem o dimensão do texto, mas nem eu mesmo sei de onde veio tudo isto...vou tentar dormir...pode ser que, ao acordar, eu saiba explicar alguma coisa...