Há noites assim. Noites em que, mesmo estando em paz, o sono demora a anunciar o descanso que julgamos merecer. Noites em que nada parece ser passível de nos distrair, de nos entreter. Como se houvesse algo a faltar, algo que, sem nos lembrarmos, acabamos por não esquecer…
E então visitamos e revisitamos o que é nosso, o que fomos, o que somos. Vemos e revemos coisas, pessoas e lugares que outrora foram nossas casas e nossos lares. Acabamos por redescobrir o passado tão presente que anuncia ou denuncia o que está por vir. Notamos no que foi dito, escrito ou sentido. Reparamos que há vozes, músicas e canções que estimulam o nosso ouvido. Saboreamos as brisas que nos roçam a pele, os odores que perfumam o nosso jardim, as lembranças de um outrora, talvez, cada vez mais longe do fim…
Relêem-se textos, renovam-se conceitos. Reerguem-se sombras escondidas nos peitos dos que, sendo imperfeitos, sabem o porquê de terem sido os eleitos. Surgem nuvens, dissipa-se a névoa, ergue-se a bruma e sentem-se os raios de Sol. Afinal, há mais que um pássaro a cantar na janela. Afinal nem todo o belo cantar tem como dono o rouxinol…
Sobrevoam-se pedras, penedos e rochedos. Contam-se as vitórias e escondem-se os medos. As mágoas ainda não se escaparam dos dedos, mas as cicatrizes nelas presentes não foram feitas por ferros acesos. São sinais de luta, de batalha e de conquista. São provas de quem quer e procura ver mais além do que alcança a nossa vista. São nobres testemunhos de seres abnegados que, de tanta abnegação, outrora foram vistos como os renegados, os pobres e os coitados…
Há noites assim. Noites em que tudo parece estar impregnado de nada. Do nada, parece que já temos tudo, mas se esse tudo está cheio do nada, que nada é esse que preenche o tudo, deixando-o vazio e sem nada? E que tudo é esse que se deixa consumir pelo nada que já foi, em vez de se agarrar a tudo o que está para vir?
Há noites assim. Noites em que velejamos ao sabor do vento do nosso conhecimento. Noites em que os ventos, as ondas e as marés são mais caminhantes que os nossos próprios pés. Noites em que perscrutamos o nosso interior à procura de algo mais do que a vida, a paixão, a alegria ou a dor. Noites em que visitamos e somos revisitados. Noites em que por isso mesmo, amamos e somos amados, em que nos rimos e nos sentimos revoltados. Noites em que desejamos sem ter sido desejados e em que voamos para todo e qualquer lado…
Há noites assim. Noites que parecem não ter mais fim. Noites em que tudo é o começo de algo já iniciado. Seja noutra vida, noutro presente, noutro futuro ou noutro passado. Noites em que o Céu confunde-se com o mar, em que a brisa não é feita de ar e em que as estrelas parecem soluçar. Noites em que o Criador recebe a sua criação, de corpo, alma e coração, para fazer dela algo mais do que o seu ser, algo mais do que o que nele se pode ver…
Há noites assim. Noites em que, procurando-me, acabo por me perder…Para mais tarde me reencontrar onde julgava não poder estar. Ou seja, em todo o lado: no Céu, na terra e no mar. Vejo que estou onde não estou. Sei que sou o que sou e o que não sou. Estou consciente que caminho para onde não vou. Creio que minto se esqueço o que sinto e porque sinto. Talvez por isso ainda hoje o pressinto…
O quê? Pois…o quê…Há noites assim. Noites em que não sabemos o quê, o porquê e sei lá mais o quê. Noites em que tudo parece desfasado da realidade que desconhecemos, mas que nos circunda; da realidade que conhecemos, mas que não nos rodeia. Noites em que se ousa escrever algo sem ter algo mais, como base, do que a própria vontade de escrever. E porque não é pecado escrever, a este anseio acabo por me submeter…
Mas este anseio não é sinal nem é resposta. Este anseio não é tudo nem é nada. Este anseio é apenas uma rua sem calçada, um muro sem parede. Este anseio é trapézio sem rede. É água que consola a minha sede. Este anseio é a busca incessante e interminável do início que anuncie o fim do princípio iniciado sem esperanças de conclusão. Este anseio é a caixa de Pandora que trago presa ao coração. Este anseio é quem sabe, e mesmo estando em paz comigo mesmo, a minha própria resposta em mim. É quem sabe, o segredo de o porquê de haver noites assim…